domingo, 20 de outubro de 2013

OS OLIMPIANOS E AS CURVAS: GAUDÊNCIO TORQUATO


Os olimpianos e as curvas - GAUDÊNCIO TORQUATO

O ESTADÃO - 20/10

Um oceano de distância separa os territórios de artistas como Roberto Carlos (que saudades das curvas da estrada de Santos), Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil e outros de áreas frequentadas por figuras exponenciais da política e do governo. Mas uma condição os torna habitantes da mesma constelação: a visibilidade de seus perfis, que lhes confere fama e poder. O mesmo ocorre com jogadores de futebol, atores e atrizes de novelas, príncipes e princesas de monarquias que ainda povoam o mapa das Nações. Ao lado de um político comum, Pelé, Neymar ou Messi, a atriz Deborah Secco, o ator Antônio Fagundes ou William e Kate, duque e duquesa de Cambridge, certamente ganhariam mais palmas, não se descartando a hipótese de apupos dirigidos ao detentor de mandato popular. Se o político, porém, dispuser de extraordinário poder, como Barack Obama, que preside a maior potência do planeta, seria razoável pensar em efusivos aplausos para ele.

A admiração por uns e a rejeição a outros decorre da simbologia que encarnam, um formidável arco de conceitos e situações que abarca o mundo das diversões; as esferas da política, com seus graus diferenciados de poder; os reinos que fazem lembrar contos de fadas, onde os olhares se embevecem com casamentos reais entre príncipes e plebeias que adentram os palácios e ascendem às alturas; as novelas noturnas, com dramas e tramas psicológicas, fontes de catarse e consolação de plateias fiéis aos personagens; os shows musicais, que permitem às multidões fruir um frenesi coletivo, abrindo as gargantas para acompanhar bandas e cantores, sob a cadência movimentada de corpos e braços; os espetáculos esportivos, onde torcedores fanáticos aplaudem seus ídolos e xingam adversários e o juiz da partida, beijando a camisa dos times e promovendo a integração de sentimentos e paixões. Essa moldura do novo Olimpo, que o filósofo e educador Edgar Morin descreve como o habitat das vedetes do Estado Espetáculo, é iluminada todos os dias pela fosforescência midiática. Os tipos, com sua dualidade divino-humana, alguns elevados à categoria de heróis do cotidiano, se tornam onipresentes em todos os setores da cultura de massa.

Essa casta desperta curiosidade e admiração. Afinal, indagam-se os mortais, eles fazem as mesmas coisas que fazemos? Enfrentam dificuldades, acordam cedo, tomam banho, têm dores de cabeça, queixam-se da dureza do dia a dia ou suas rotinas são um desfile interminável de almoços e jantares, conversas e festas? Para entrar nesses céus envoltos em mistério, as pessoas comuns se valem dos fenômenos da projeção e da identificação, que os fazem transferir seu ambiente psicológico para o habitat das celebridades, depois de conhecer seu lado humano e se identificar com seus gostos, atitudes e pensamentos. A felicidade frui quando alguém descobre: “puxa, sou um pouco parecido com ele (o ídolo)”. Nessa esteira, multiplicam-se as histórias sobre a “vida pessoal” de cantores, compositores, políticos, jogadores de futebol, ao mesmo tempo em que se expandem as revistas ilustradas e de “fait divers”, com matérias sobre o mundo artístico. As biografias não autorizadas constituem o acervo mais denso desse nicho. São ferramentas para furar as muralhas que cercam as fortalezas em que se encastelam estrelas da constelação olimpiana.

Dito isto, vem a pergunta: as vedetes da cultura de massa podem ter biografias não autorizadas sobre suas vidas ou os relatos devem receber sua prévia autorização? A resposta comporta, de início, considerar a faceta pública desses semideuses, tanto os políticos quanto os artistas. Uns e outros têm deveres para com a sociedade. Dependem do público. A partir do momento em que suas atividades são massificadas – fator de sucesso profissional – submetem-se ao ordenamento ético de prestar contas a quem os acompanha. Que inclui relatos não apenas das retas, mas das curvas de sua existência. A esse posicionamento público do artista e do político, soma-se o ditame constitucional que acolhe a manifestação de pensamento e da informação sem restrição. Se a honra, a vida privada e a imagem das pessoas são invioláveis, ainda nos termos constitucionais, lembre-se que há dispositivos no código penal contra danos morais, calúnia (art.138), difamação (art. 139) e injúria (art. 140), além da restrição às biografias, prevista pelo art. 20 do Código Civil. Países democráticos, como EUA, Canadá, Reino Unido, França, Espanha não admitem qualquer censura às biografias não autorizadas, ao contrário de Rússia, China e Síria, por exemplo.

Imagine-se a execração pública de Bill Clinton se censurasse biografia sobre sua trajetória presidencial, nela incluído o episódio com a estagiária Mônica Lewinski. Aliás, os norte-americanos estão lendo avidamente o livro Sexo na Casa Branca, do historiador David Eisenbach e do editor Larry Flynt, que conta histórias impactantes, algumas conhecidas, mas não relatadas com detalhes, como as que envolveram os presidentes Abraham Lincoln, Thomas Jefferson, James Buchanan, Franklin Roosevelt e John Kennedy. Houvesse censura na Inglaterra, a história do príncipe Charles e Camila Parker teria sido guardada no baú. E também o caso mais escandaloso da política inglesa: o envolvimento do ministro da guerra, John Profumo, com a modelo Christine Keeler, no começo dos anos 60. Isso é importante? Sem dúvida. São as entranhas da política. Estabelecer patamar diferente para político e artista é defender tratamento privilegiado para uns. É formar uma casta dentro da casta. Biografias autorizadas são livros de autoglorificação, loas ao biografado. E querer cobrar do autor percentagem pela obra é apropriar-se de um direito que não pertence ao artista. Nas situações em que as biografias alavanquem a venda de discos, o autor da obra teria direito a uma percentagem da vendagem? Livros maldosos e mentirosos devem ir, sim, para a fogueira. Pelas mãos dos leitores, não pelo tacão da censura.

Debates que se perdem - JANIO DE FREITAS

FOLHA DE SP - 20/10

Todos os que defendem a exigência de autorização aos biógrafos dizem não estar defendendo a censura. Mas censura é isso

REAÇÃO DE última hora, e exacerbada, contra o leilão da área de Libra no pré-sal vem de uma aberração brasileira que encontra, neste episódio, o papel de exemplo perfeito. Tanto de si mesma, como do seu agravamento ameaçador.

Protesto é sempre cabível: assim caminha o regime democrático para o seu aprimoramento, aos solavancos das reafirmações e das reconsiderações. Mas a hora dos atuais protestos contra o leilão de Libra era lá atrás, quando o governo Lula projetou o modelo de exploração do pré-sal por petrolíferas privadas, com associação minoritária do Estado brasileiro.

A causa do protesto era e é perfeitamente defensável em nome de múltiplas razões nacionais. O seu confronto com os interesses empresariais, alheios às questões nacionais, por certo seria proveitoso em muitos sentidos. Não ocorreu, porém. Não pôde haver mais do que manifestações anêmicas. Por quê?

Só para lembrar um caso a mais, na mesma linha: dá-se igual com a multibilionária Copa, já presente em protestos públicos e promessa de reações maiores na hora final. Por que a reação não se deu quando podia suscitar alguma reflexão sobre o ímpeto, pouco ou nada responsável, com que Lula buscava essa inutilidade esbanjadora?

É a falta de partidos representativos. Os segmentos da sociedade estão órfãos, entregues a si mesmos. Ou, no máximo, a associações que até podem ter representatividade, mas solta no espaço, sem a necessária extensão na arena adequada que seria o Congresso.

Aos partidos compete serem as vozes da sociedade, organizá-las para serem forças, opô-las para chegar à composição de posições ou à prevalência de um lado. Mas não há partidos: são organizações comerciais, todos interessados em manter o afortunado poder ou em tomá-lo.

A aberração arrasadora e crescente. O que equivale a dizer que assim são os seus efeitos. Até quando e até onde, cada um de nós que imagine.

OUTRO NÃO DEBATE

A polêmica das biografias degringola depressa para o gaiato. Chico Buarque escreve contra a hipótese de difamação em livro praticando horrível difamação de um escrito. No mais, só deu fora: mal informado, os outros exemplos que cita como comprovações de sua opinião são inverdadeiros, e comprovam a tese contrária à sua.

No retorno, Chico Buarque engrossou: "Se for levar isso ao extremo [o direito de escrever biografia sem depender de autorização do biografado ou de parentes], o sujeito é obrigado a deixar invadir sua casa, fazerem fotografia de cueca, exporem sua mulher em trajes mínimos, sem poder recorrer". São mesmos os riscos e a tendência que uma pessoa séria vê?

O compositor, cantor e escritor Jorge Mautner compara os biógrafos com agentes da KGB, a polícia política de Stálin, personagens do que ele disse ser uma piada em que disputam quem mais inventaria para prender duas turistas inocentes. Exposta a comparação, a graça Mautner guardou para si. Um outro, jornalista cultural, encontra "situação análoga" entre a defesa de censura a biografias e a defesa de diploma universitário para jornalistas.

E todos os que defendem a exigência de autorização aos biógrafos dizem não estar defendendo censura. Querem o predomínio, sobre a liberdade constitucional de expressão e informação, dos artigos do Código Civil que permitem impedir biografias contrárias à honra ou à imagem. Para sabê-lo, porém, só lendo a biografia antes, para aceitá-la ou vetar a publicação. E censura é precisamente isso, nem mais nem menos.

Os defensores da biografia necessariamente autorizada estão pondo todos os biógrafos no papel de difamadores potenciais, quando não contumazes. Os biógrafos já podem processá-los criminalmente por calúnia, injúria e difamação. E cobrar em indenizações, já que os acusadores falam também em dinheiro, o que as biografias não lhes rendem.

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