quinta-feira, 29 de outubro de 2015

Míriam Leitão - Proposta indecente


- O Globo

Câmara quer lavanderia em época de Lava-Jato. É sintomático que alguém tenha proposto uma mudança no projeto de repatriação de recursos anistiando doleiros, sonegadores e o caixa dois. Ela foi formatada como um terno sob medida para os investigados pela operação Lava-Jato e cabe direitinho em todos que têm dinheiro na Suíça e não sabem dizer a origem dos recursos, ou sequer admitem a existência das contas.

Como disse o deputado Miro Teixeira (Rede-RJ), a proposta é inconstitucional. E imoral. Se aprovada, a anistia pode ser questionada no Supremo Tribunal Federal. As críticas foram tão fortes que a Câmara adiou a votação para terça-feira. Mas todo o cuidado é pouco. Quem fez a proposta não entendeu o momento que o país está vivendo, de repúdio à corrupção, de fortalecimento das instituições que combatem o crime de lavagem de dinheiro e corrupção. Como é mesmo que surgiu um absurdo destes numa hora dessas?

O deputado Manoel Junior (PMDB-PB), no seu relatório, tirou a proteção que havia sido colocada no projeto do governo e incluiu explícitas possibilidades de anistia de dinheiro de origem escusa. O deputado é o mesmo que foi cotado para ministro da Saúde na reforma ministerial, e só no último momento a presidente decidiu não nomeá-lo.

A ideia do projeto foi levantada pelo senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP). Ele tentou evitar que a regra fosse usada como veículo para limpeza de dinheiro sujo e foi ouvir especialistas para incluir cláusulas de proteção.

— O meu projeto, o 298 de 2015, foi escrito após ouvir tributaristas como Heleno Torres. A preocupação era como trazer recursos para o país sem legalizar dinheiro sujo. Eu incluí, portanto, dois dispositivos de proteção contra recursos ilícitos e a obrigação de que quem estivesse internalizando o dinheiro fizesse uma declaração junto ao Ministério Público sobre a origem legal do recurso — disse o senador.

O governo, por exigência da Câmara, decidiu apresentar o projeto como de iniciativa do Executivo. E estabeleceu as mesmas travas de proteção. Consultou o Ministério Público e ouviu a OCDE, que idealizou o projeto em 49 países, para evitar que virasse uma lavanderia. Mas cometeu o erro de ceder a quem não devia:

— O deputado Eduardo Cunha exigiu que o projeto fosse enviado primeiro para a Câmara. Assim ele não poderia ser alterado no Senado, do contrário volta à Câmara para a palavra final. O governo concordou. Agora se entende sua insistência —, diz o senador.

O relatório ao Projeto de Lei 2.960, do deputado Manoel Junior, contendo as perigosas alterações, foi considerado, na área econômica, uma porta aberta aos crimes que têm sido investigados. Os maiores colaboradores da Justiça têm sido os doleiros e eles seriam beneficiados com as medidas propostas.

— A presidência da Câmara prometeu ao Planalto adotar o texto do Senado, quando exigiu que ele se tornasse um projeto do Executivo. Mas só permaneceu o nome do programa. O resto foi desfigurado —, disse um técnico do governo.

A ideia da área econômica era trazer os recursos para financiar a reforma do ICMS. Só seria permitido que quem tinha enviado recursos ao exterior sem declarar à Receita pudesse trazer o dinheiro de volta pagando um imposto e uma multa. A soma dos dois ficaria no mesmo percentual da alíquota imaginada no projeto do senador Randolfe: 35%.

A grande questão não é nem a tramitação do projeto, porque sempre haveria a possibilidade de ser vetado — ainda que seja curioso o veto a um projeto do próprio governo. Mas a dúvida mesmo é como uma alteração indecorosa dessas pode ser feita a esta altura dos processos de investigação de crimes financeiros em várias operações, principalmente na Lava-Jato?

Qual parte o deputado e seu óbvio inspirador não entenderam do momento que o Brasil está vivendo? A desfaçatez tem limites e neste caso foram ultrapassados. A ideia é proteger o país do dinheiro sujo e trazer recursos que possam contribuir para o desenvolvimento do país em momento de financiamento escasso e arrecadação em queda. O Brasil não quer ter esses recursos ao preço de anistiar crimes contra os quais está lutando. Da ideia original, nada ficou. O espanto é a cara de pau de quem incluiu as mudanças.

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