sexta-feira, 22 de abril de 2016

Estamos falando da mesma coisa? - Fernando Gabeira*


- O Estado de S. Paulo

Acordei na segunda-feira com um travo na garganta. A Câmara dos Deputados votou o impeachment. Era o desejo da maioria. Mas a maneira como o fez, com aquela sequência de votos dedicados à família, a filhos, netos e papagaio, com Bolsonaro saudando um torturador... fui dormir como se estivéssemos entrando na idade das trevas.

Entretanto, quando me lembro das grandes demonstrações, sobretudo nas áreas metropolitanas do Brasil, constato que os deputados inventaram um enredo próprio para o impeachment. Não há sintonia com a realidade das ruas. Isso é demonstrado pela própria reação nas redes sociais.

O Brasil parece ter descoberto um Congresso que só conhecia fragmentariamente. Isso dói, mas em médio e longo prazos será bom.

Na segunda passada, na minha intervenção radiofônica, previ essa cantilena. Foi assim no impeachment de Collor. De lá para cá, o Congresso, relativamente, decaiu em oratória e cresceu em efeitos especiais. Houve até uma bomba de papel picado no plenário.

Durante anos as coisas se degradaram por escândalos no aumentativo: mensalão, petrolão. No impeachment, os 511 deputados passaram por um raio X do cérebro, diante de cerca de 100 milhões de expectadores.

Visto de fora, abstraindo a causa das ruas, foi um espetáculo grotesco.
Isso implica consequências. Agora todos têm ideia ampla da Câmara real. Durante os debates, viram vários dedos apontados para Eduardo Cunha. Numa escala de golpista, corrupto e gângster. E Cunha ouviu tudo, gélido, apenas esfregando as mãos.

Tem de ser o próximo a cair. Sua queda une os dois lados do impeachment, sem muros. Nem que se tenha de pedir socorro ao Supremo, tentar comunicar aos ministros a sensação de urgência da queda de Cunha.

O descompasso entre a sociedade, que pede uma elevação no nível político, e a Câmara pode levar a um novo comportamento eleitoral.

O impeachment é uma tentativa de iniciar o longo caminho para tirar o Brasil da crise. Algumas pessoas choraram pelo resultado, outras, como eu, choraram apenas pelo texto.

Compartilho parcialmente a sua dor. Mas os generais da esquerda as levaram para uma batalha com a derrota anunciada. Mascararam de perseguição política um processo policial fundamentado, com provas robustas e até gente do PT na cadeia.

Ao classificarem como golpe o impeachment, tentaram articular o discurso salvador que pudesse dar-lhes algum abrigo dos ventos frios que sopram de Curitiba.
Sobraram motivos para ressaca do day after. O essencial, se tomarmos a crise como referência, é que o processo siga seu curso da forma que prevê o rito, que é razoavelmente rápida.

Muito brevemente o centro do processo será Michel Temer. As coisas que vazam de seu refúgio não são animadoras. Por exemplo, consultar um ex-ministro da Comunicação de Dilma que propunha uma articulação do governo com a guerrilha na internet. O próprio ex-ministro deveria ser mais leal a Dilma.

Aliás, o rosário de traições na Câmara foi deprimente. Um deputado do Ceará disse: desculpe, presidente, mas voto pelo impeachment. É um espetáculo da natureza humana que me fez lembrar as traições a Fernando Collor. Gente que jantou com ele na noite anterior ao impeachment.

Costumo deixar essas considerações gerais para domingo. O foco é o processo de impeachment como esperança de dar um passo para enfrentar a crise. Deixo apenas esta lembrança para exame posterior: com 90 deputados investigados, a Casa Legislativa que existe legalmente cassou Dilma. Mas agora que todos os conhecem, não seria o momento de questionar o foro privilegiado?

Ao longo de 16 anos de Congresso, sempre defendi privilégio para o direito de voz e voto, como na Inglaterra. Fora daí, Justiça comum.

É um fragmento de uma reforma política que pode vir de baixo, como a Lei da Ficha Limpa. E a mensagem é clara nestes tempos de Lava Jato: a lei vale para todos.
Se os processos de impeachment, no Brasil, acontecem de 20 em 20 anos, creio que este foi o último a que assisti. Privilégios da idade.

É preciso pensar agora na transição. A de Itamar era mais leve. Ele não tinha partido forte, não era candidato. Temer tem uma energia pesada em torno dele. A começar por Cunha.

Em tese, precisa tocar o barco e contribuir para que alguns corpos caiam no mar. Se não contribuir, vão cair de qualquer maneira, só que de forma mais embaraçosa. O que está em jogo é o destino de muita gente, um projeto para sair da crise.

Já que decidiu ficar calado por um tempo, Temer deveria pensar. O cavalo que chega encilhado à sua frente é um cavalo bravio. Para montá-lo é preciso coragem.

A vitória do impeachment na Câmara dos Deputados foi resultado do movimento de milhões de pessoas indignadas com a corrupção, castigadas pela crise econômica.

Se considerar apenas o resultado da Câmara, não tocará nos dois temas ao mesmo tempo. Mas se considerar o esforço social que levou a esse resultado, não pode ignorar o problema da corrupção, como se ela estivesse indo embora com os derrotados de agora.

Com mais faro para o desastre, o PMDB pode organizar melhor que o PT a sua retirada. Compreender, por exemplo, que não está chegando ao poder, mas se preparando para sair dele com estragos menores nos seus cascos bombardeados pelos canhões da Lava Jato.

É uma transição na tempestade até 2018. Nenhuma força política sabe se chegará lá ou como chegará. Diante da vigilância social, o jogo ficou mais complicado.
Mas esse é o nível do nosso universo político. Do salão verde para o azul, espera-se uma ligeira melhora no Senado. Ainda assim, é longo e espinhoso o caminho de uma renovação política no Brasil.

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*Fernando Gabeira é jornalista

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