terça-feira, 8 de agosto de 2017

Sinais antecedentes | Míriam Leitão


- O Globo

Um país começa a dar errado muito antes de mergulhar na crise da dimensão em que está a Venezuela. Os sinais aparecem em tempo de se evitar o pior. No caso da Venezuela, houve duas décadas para a correção de rota, mas o país escolheu insistentemente o desastre. A estratégia usada agora por Nicolás Maduro é mais uma exaustiva repetição da técnica chavista para manter o poder.

Hugo Chávez assumiu o poder há quase 20 anos e, de lá para cá, sempre que o chavismo se sentiu ameaçado alterou as regras do jogo para se favorecer. Usou a democracia para sufocar a democracia. Essa manobra da nova constituinte é apenas mais uma das vezes, só que o tecido social se esgarçou de tal forma que a cada novo golpe o país está mais fraco.

Quando entrevistei o presidente Chávez, em Caracas, em 2003, ele brandiu, como se fosse bíblia, a Constituição que havia alterado e me deu um exemplar de presente. Em casa de uma chavista, vi a mesma adoração do “texto sagrado”. É essa Constituição que agora Maduro quer reescrever em mais um momento em que seu poder foi desafiado.

Todas as vezes em que se formou uma maioria adversária ao governo, ela foi dissolvida através de manobras como antecipação de eleição, mudança de regras, e agora a decisão de reescrever a Constituição Bolivariana que eles mesmos fizeram. Em 2003, já estava claro que essa era a técnica. Na época, Chávez havia mudado as normas eleitorais e a composição do Conselho Nacional Eleitoral para favorecer o governo nas votações.

Anteriormente havia alterado toda a cúpula militar, promovendo os quadros de sua confiança, da média oficialidade, da qual era proveniente. E isso explica até hoje a longa duração do regime. Depois, mudou a composição da Suprema Corte, aumentando o número de juízes, até ter maioria a seu favor.

Hugo Chávez sempre convocava plebiscito para reescrever as leis quando se sentia forte, nos momentos de boom da economia, produzidos pelo petróleo. Quando o resultado do referendo era desfavorável, ele fingia aceitar as urnas, para, em seguida, na primeira oportunidade, revogar a decisão popular com alguma nova manobra. Nada diferente do que tem sido feito pelo seu sucessor. A história vai se repetindo, cada vez mais como farsa.

Nas três horas que esperei por Hugo Chávez no palácio, o que vi foram os sinais de tudo o que se repetiu e se agravou nos 14 anos seguintes. Havia panfletos convocando a formação de milícias bolivarianas, hoje elas estão armadas e matando opositores. Vi, nos corredores do Miraflores, a compra e venda do mercado paralelo de farinha, e o desabastecimento passou a ser uma constante na vida dos venezuelanos. Pelas armas apontadas contra mim e o cinegrafista que me acompanhava, como se fôssemos inimigos e não jornalistas chegando para uma entrevista, pelo clima militar no Miraflores, pelas barricadas montadas do lado de fora do palácio, entendi a natureza do regime. Quem já havia visto ditadura e democracia sabia que a Venezuela caminhava para uma ditadura.

O olhar através do tempo mostra que uma tragédia se faz repetindo insistentemente os mesmos erros. O chavismo quis destruir por dentro as instituições e foi o que conseguiu. Quis dividir os venezuelanos entre “nós e eles” e conseguiu. Prometeu combater a vasta pobreza e a enorme desigualdade do país, mas isso não conseguiu. A crise econômica prolongada, os períodos de recessão, a alta inflação provocadas pelo governo atingiu mais os pobres, como sempre acontece. Se havia o mérito da luta contra as enormes desigualdades venezuelanas, ele se perdeu. Hoje é apenas uma tirania usando as armas conhecidas para manipular e permanecer.

A Venezuela desafia os prognósticos sobre o tempo tolerável de uma crise. O país tem vivido mergulhado na tragédia nacional por um tempo muito além do possível. E continua sem ter horizonte. O que ela nos ensina, pelo seu avesso, é que tipo de polarização radicalizada evitar, que tipo de salvacionismo rejeitar, que sinais devem ser observados de que o país ruma para a desagregação social, econômica e política. Na política, como na economia, há sinais antecedentes. É preciso vê-los a tempo.

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